Às vezes ainda vejo-me naquele fusca. Penso em todos os conceitos que giram em torno das pontes pelo mundo afora. Penso nas pontes que conheci e naquela que aprendi a amar. Penso nas pontes imaginárias e nas pontes que papai conseguiu construir entre o mundo das Letras e o meu coração. Penso nas pontes de concreto e nas inúmeras possibilidades de encontros. Sabe pai, às vezes penso na nossa estória... uma ponte para você.
Uma ponte especial - do livro Uma Ponte Para Você - Nivea Oliveira
Os nossos sonhos são como
estradas sinuosas que nos conduzem em direção ao novo, ao desconhecido. Durante
a minha infância conheci a força que a imaginação tem sobre a realidade,
alterando rotas, dando significação a alguns gestos, superando dores... Nesses
momentos o que parece ser o apagar das luzes revela-se como uma nova
possibilidade, um recomeço.
Papai era um homem muito
inteligente. Um metro e noventa de ternura e uma linda cor de jambo. Amante da
leitura e da escrita, um homem à frente do seu tempo. Não tive tempo de
conhecer os seus defeitos. Mas o que fazer?
Meu irmão nasceu com a cor
de jambo do papai. Minha irmã e eu parecíamos mais pálidas após o nascimento
dele. Desgostava-me saber que papai o amaria mais do que a mim devido àquela
linda cor que eu não tinha. Disposta a dar um fim à minha angústia, arquitetei
um plano para jogar o meu irmãozinho fora, como havia feito com alguns bonecos.
Jogar fora significava guardá-lo dentro do guarda roupa, bem lá no fundo,
tirando-o de circulação. Mamãe e vovó intuíram os meus intentos e ficaram
alerta. Um dia consegui tomar o meu irmãozinho em meus braços e,
cuidadosamente, conduzi-o para o guarda roupa dos meus pais. De repente, mamãe
apareceu à minha frente e, muito zangada, disse-me para eu não segurar o meu
irmão daquele jeito. Meu irmão era muito gordinho e mantê-lo em meus braços não
era uma tarefa fácil. Obediente, abri os braços fitando mamãe enquanto meu
irmãozinho estatelava-se no chão.
Papai conversou comigo e a
explicação que ele deu-me foi simples: meu irmãozinho havia sido feito à noite.
Minha irmã e eu durante o dia. Aquela estória pareceu-me bonita e durante
muitos anos acreditei nessa argumentação ressaltando essa diferença com
orgulho. Foi assim por muito tempo, suscitando sorrisos e comentários da parte
dos adultos. Os anos passaram até que, um dia, as aulas de ciência colocaram
fim ao que seria a nossa marca distintiva. Mas naquele então eu já amava demais
o meu irmão para rebelar-me contra ele. Descobertas, intrigas, ciúmes. Um
ensaio para a nossa vida adulta.
Papai dedicava grande parte
do seu tempo lendo e escrevendo e um dia revelou-me um grande segredo que
mudaria a minha vida para sempre: os livros falam com a gente.
Após esse episódio fui apresentada ao mundo das Letras. Diariamente papai
repetia-me: “esse é o n, esse é o i, esse é o n de novo,
esse é o h e esse é o”. Eu olhava para aquelas imagens. Quando
não conhecemos as letras aqueles símbolos nos dizem muito pouco. Eu sabia,
porém, que o n tinha algo a ver com o meu nome. Eu gostava muito dessa
associação mesmo sem compreendê-la totalmente.
Certa manhã, enquanto bebia
o meu copo de leite diário, pronunciei a palavra ninho. Papai e mamãe
olharam-se e logo percebi que eu havia dito algo que eles haviam gostado. Vovó
veio em seguida. Os três abraçaram-me, felizes, durante muito tempo.
Papai amava as atividades
criativas e, algumas vezes, ele reunia a nossa família para inventarmos novas
estórias que nasciam de recortes de revistas e gibis velhos. Foi numa dessas
ocasiões que ele falou-nos sobre a ponte que seria construída na nossa cidade,
ligando o Rio à Niterói. A rainha Elizabeth havia dado inicio simbólico às
obras. Era o ano de 1968. Papai explicou-nos que as pontes unem mundos
diferentes, que seria um grande progresso para todos nós poder chegar até
Niterói em vinte minutos. Ele prometeu que iríamos conhecer a ponte no dia da
inauguração daquela que seria um grande marco nos próximos anos no que diz
respeito à engenharia. Fiquei impressionada com aquela estória. Eu entendia
muito bem de rainhas e pontes, que sempre apareciam nos enredos dos meus livros
e nas estórias que papai costumava contar-me.
Algum tempo depois a doença
levou o papai para o Hospital da Lagoa. Esse nome evocava em minha mente uma
imagem belíssima. Quem sabe se não tinha uma ponte sob essa lagoa? A
ponte! Papai deveria voltar logo,
tínhamos um encontro marcado.
Numa manhã quente vovó
acordou-nos dizendo que o papai não estava mais nesse mundo. A vovó era uma
pessoa diferente e as suas premunições eram infalíveis. Indaguei sobre qual
mundo ele teria ido. Vovó parecia hipnotizada e não respondeu-nos. Um carro
estacionou à nossa porta e mamãe saiu dele acompanhada por amigos e parentes.
Corri para dizer à mamãe o que a vovó havia nos revelado. Mamãe chorava sem
parar e logo percebi que o papai havia ido para esse tal de outro mundo mesmo.
Dia 4 de março de 1974. A
ponte Rio-Niterói estava sendo inaugurada. Ao mesmo tempo papai ia para o tal
outro mundo enquanto eu sentia-me terrivelmente só neste.
Após o nosso adeus ao
papai, um dos nossos amigos reuniu toda a nossa família e conduziu-nos, num
fusca amarelo, pelas estradas do Rio de Janeiro. Vamos conhecer a ponte
Rio-Niterói, disse o nosso vizinho. Arregalei os olhos! Iríamos então
conhecer a famosa ponte que mudaria a nossa cidade. Ao chegar à ponte admirei a
imensidão da quantidade de água e os outros carros que passavam por nós. Pensei
na rainha Elizabeth. Pensei no papai. Aquela ponte era realmente mágica e
estava unindo mundos.
Às vezes ainda vejo-me
naquele fusca. Penso em todos os conceitos que giram em torno das pontes pelo
mundo afora. Penso nas pontes que conheci e naquela que aprendi a amar. Penso
nas pontes imaginárias e nas pontes que papai conseguiu construir entre o mundo
das Letras e o meu coração. Penso nas pontes de concreto e nas inúmeras
possibilidades de encontros. Sabe pai, às vezes penso na nossa estória... uma
ponte para você.
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