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Eu menino e dona Bilú

Eu ainda era menino e não sabia nada sobre a luta de algumas pessoas para sobreviver e levar adiante os próprios sonhos. Naquele tempo a nossa pobreza era como os bolos de Dona Bilú: perfumados e saborosos. Não se sofria porque não tinha isso ou aquilo. Tínhamos tudo em nossas vidas: as cordas que meu tio da Marinha nos trazia para pularmos com as meninas de Dona Filó, a costureira; as estórias de vovó que era a líder da rua e os bolos de Dona Bilú. O nosso sorriso ficava mais largo quando, nos finais de semana, vovó ia visitar a amiga Bilú. A casa era simples, de chão batido. As roupas tinham um cheiro de sabão que meus produtos atuais não conseguem reproduzir hoje, quadros de antepassados, uma vida em preto em branco que desfilava sob o móvel de madeira escura da sala. Aquele era o móvel mais imponente daquele ambiente simples. Vovó sempre o elogiava. Ela dizia que ele havia sido dado de presente, no passado, por uma ex-patroa de Dona Bilú. O verdadeiro nome da minha querida Dona Bilú continua sendo um mistério, naqueles tempos não sentia a necessidade de indagar certas coisas, a gente aceitava os nomes, os “cala a bocamenino”, as decisões de vovó que de certa forma comandava meus pais e eu. O que fazer. Hoje seria tão bom ter alguém que se preocupasse comigo assim.

Os bolos quentinhos saíam daquele forno pequeno. A casa de Dona Bilú tornava-se grande naquele momento. Enorme. Meu coração palpitava, eu era o menino mais feliz do mundo. O mundo parecia não caber em mim. Os assuntos eram coisas dos adultos e a nós era permitido ouvir tudo e não perguntar nada. Coisas do passado. Hoje não se pode agir assim. Eu comia o primeiro pedaço com voracidade. Bolo quente faz mal, dizia vovó. Eu sabia que Dona Bilú me daria outro pedaço, era sempre assim. Uma infância de certezas. Cada coisa havia um lugar e na hierarquia dos grandes o meu espaço de menino não era sofrido. Eu aceitava tudo porque não existia nada melhor do que aquele bolo. Ao terminar de comer ouvia vovó com meus olhos arregalados, sentindo na língua o gosto da mandioca ralada, ou do chocolate. Dona Bilú por sua vez escutava vovó e sem dizer nada pegava a faca e começava a partir o segundo pedaço, olhando-me com o canto do olho. Meu coração disparava de novo. Vovó recriminava a atitude e a amiga respondia que eu precisava crescer. Sim, Dona Bilú, eu quero ser um gigante. Mastigava bem devagar meu segundo pedaço de bolo. O tempo esgotava-se e eu desejava eternizar aquele sabor, aquele momento. O sabor dos bolos, o sabor da minha infância, que ainda hoje tem aquele perfuminho de cozinha de Dona Bilú, aos domingos à tarde. Hoje não como mais bolo porque tudo que gosto engorda ou faz mal e já não sei mais ouvir como antes. Tornei-me impaciente. Não me esqueço, porém, dos bolos de Dona Bilú.

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