A grama do vizinho
É sempre mais verde. A cor e forma são impecáveis deixando V. com um misto de
raiva e inveja.
-“Mas como ela consegue?” Assim dizia V. ao marido todas as vezes em que
a vizinha ao lado saía para ir nadar. V. não tem filhos e vive com o marido S., que é aposentado.
A vizinha era viúva e tinha dois filhos adolescentes. A natação foi a maneira
que ela encontrou para ficar consigo mesma depois de passar um dia entre a
cozinha, ferro de passar e máquina de lavar. Depois dos trabalhos de casa tinha o mercado, os
pagamentos no banco, as reuniões na escola, a vida seguindo em frente enquanto
ela mastigava um pedaço de pão francês e engolia o café açucarado. Os filhos pediam atenção constante e a saudade do marido ia se diluindo no meio de tantos apelos. A piscina
era a salvação. Debaixo d’água o cérebro fazia conexões, buscava soluções,
recordava. A sua grama vingou.
Na casa de V. a solidão era entrecortada pelos rumores que chegavam diariamente
da cozinha. A sala pequena e quente tinha como protagonista a televisão que
trazia um mundo colorido e caótico deixando uma triste ilusão de que eles
participavam de todos os acontecimentos transmitidos. S. via televisão o dia todo
para não ter o que dizer. V. falava o dia todo porque sabia que seria escutada.
Nos dias quentes o tintilar do gelo no copo modificava os barulhos habituais.
Nos dias frios o edredom não saía do sofá e os programas da tarde postergavam o
momento do jantar. Um misto de sono e tédio. V. tinha uma aura pesada. Podia-se cortar o ar com a faca
quando ela estava em casa. Ele era somente o “homem tem”: "tem que fazer, tem
que cortar, tem que buscar, tem que dizer, tem, tem, tem... e aí de você senão fizer."
Certo dia S. leu uma frase que o fez ver tudo diferente. A revista era
retirada do lixo da vizinha que nadava. O prédio era pequeno e se conhecia o outro
pelos detritos que eram liberados na lixeira. A casa dele despejava grandes
quantidades de embalagens de comida pronta e pacotes de café. A gula compensava o raso conteúdo da relação. A vizinha atleta
lia muitas revistas que falavam sobre os artistas da televisão. Pelo menos era uma escolha. Talvez não das melhores. Nessas revistas
podia-se saber a cor dos lençóis, os objetos e até os animais das casas desses
seres superiores que possuem também uma “grama verdinha.” S. não entendia como se podia vender revistas assim. V. não queria cuidar
da grama. Ela queria a grama do outro. O querer sem ação a levou para a margem
enfadonha da frustração. E ele, era um “home tem” cansado de tudo, sobretudo de "ter de". E o dia chegou. Tomou uma revista nas mãos e
antes de ver a casa do cantor sertanejo S. lê uma frase de Arthur Schopenhauer:”A
insatisfação de um desejo é como a esmola que se dá ao mendigo: só consegue
manter-lhe a vida para lhe prolongar a miséria.” V. ficou degustando a frase e
nesse dia viu rugas em V. que nunca havia notado antes. Algo mudou. No meio de uma tarde saiu
para comprar cigarros levando consigo todos os documentos. Ele não precisava de mais nada. Talvez jogar fora o "tem de" e buscar o "ser algo." Foi para a rodoviária e comprou uma passagem para o
interior. Procurou um primo distante e conseguiu refazer a vida após alguns anos. O início foi difícil mas o retorno seria terrível e assim as noites passavam e os dias traziam promessas de um novo sol. Hoje tem uma
casa sonora e a televisão ganhou o papel de figurante. A nova esposa é uma
costureira de sorriso largo que passa o dia ouvindo os programas de rádio e conversando com ele que assinou a revista dos artistas famosos. A
sua grama cresceu.
V. não aprendeu a nadar, não lê nada e continua maldizendo a sorte. Agora
se esconde atrás das cortinas para ver a vizinha nadadora que além de nadar,
namora. Roga pragas para S. e toda a energia evocada bate na parede e regressa
para ela. A sua grama não vingou porque ela nunca descobriu que poderia ter
sido uma jardineira.
Nivea Oliveira
Lendo o texto criei a cena. Existe poesia no que você escreve e ao mesmo tempo um olhar cotidiano sobre o humano. parabéns.
ResponderExcluirObrigada! Escrever é um exercício que nasce da observação, do feeling com o outro. Escrever é tudo e quando consigo despertar no outro isso é sensacional!
Excluir